terça-feira, setembro 04, 2018

Avó


Lembro-me, menino, de acordar naquelas manhãs escuras e frias como a noite na velha casa onde cresci...
Dizia-me numa voz serena, enquanto a luz invadia o quarto sem aviso:
- " Velha bruxa, é hora de levantar ! Vamos a saltar da cama para não haver atrasos." (Sempre teve o mau-hábito de tratar a familia, especialmente a nós os mais novos, com alcunhas e nomes mirabulantes, quase sempre com os géneros trocados o que a divirtia imensamente.)
Eu reagia a tudo isto com a revolta e o ódio de quem é mandado para a forca, personificado em grunhidos e expressões indecifráveis mas suficientemente expressivas. - "Já cá venho ver se a Gata está levantada ou não, vou tratar do pequeno-almoço." - dizia placidamente antes de desaparecer na porta fechada. Entretinha-me a ouvir os seus passos serenos a descer a escadaria, submerso em cobertores de lã, edredons e grossos lençóis de inverno. Imóvel, ficava a dormitar dentro do meu refúgio, abrigado do frio de um dia que me exigia impiedosamente, até ouvir de novo os seus passos denunciadores escada acima. Aí, freneticamente e num pulo levantava-me da cama e, num espasmo, vestia a roupa fingindo estar acordado há já algum tempo.
- " Ah, a Gata já está vestida. Vamos a tomar o pequeno-almoço ! " - dizia enquanto desaparecia de novo na escadaria. Eu concedia-lhe um :- "Vou já!" - sêco e curto, e num cinismo só ao alcance dos grandes, voltava a deitar-me completamente vestido num prazer culpado. Adormecia de novo, seguro, na dormência quente de quem volta ao ventre materno.
Acordava então sobressaltado ao ruído de um vigoroso bater de palmas que vinha lá de baixo e ouvia a sua voz agora mais rude e firme : - " Carroça do lixo ! Vem já para baixo ! Já estás atrasado para a escola..." - Saltava finalmente da cama num esforço hercúleo, e o meu corpo era a brasa ardente de uma fúria cega que me guiava escada abaixo.
- " Ah, decidiu descer a carroça do lixo. É sempre até á última... Lá vai a carroça do lixo..." - dizia num tom trocista. Eu levava aquilo a peito como uma ofensa mortal, blindava a cara com o desprezo de quem amua e com ares de herói cobardemente traído, passava á sua frente em silêncio e precipitava-me no corredor estreito e longo que desagua na cozinha. Tanto pior, era exactamente essa reacção que procurava e enquanto me seguia pelo corredor adentro aproveitava para degustar o prato,divertida, rindo o riso próprio de quem olha de cima.
Já na cozinha, sentado num dos bancos de madeira em redor da estreita mesa de pedra, esperava ansiosamente aquele verdadeiro manjar. - Recordo com água na boca, aquela papa Maizena ainda fumegante, servida no prato de sopa de louça branca, polvilhada com açúcar e canela. - Comia tudo aquilo ávidamente e com a humildade de um ditador, condicionante própria de ser criança e de achar que o mundo é feito para nós. Na hora de sair, afundava-me em casacos e recomendações, beijava-me a testa num abraço apertado e saindo para o pateo ficava a ver-me partir.
- " Mas vá para dentro que está um frio de rachar! " - gritava-lhe eu em vão enquanto abria o portão grande que dava para a estrada, e ao ver que debaixo do ridículo xaile de verão com que se cobria tinha apenas a camisa de noite e as pantufas vestidas. Sem me responder, sorridente, e acenando com a mão ali ficava, no frio, a ver-me desaparecer ao longe na espessa e negra neblina matinal.

Verão...


Sol e calor,
Impulso e Vontade
Suor, areia e sal
Tentação sob o pedaço de pano,
Sabor carnal.

Arrepio fresco, carícia.
Luxúria pela toalha,
Quente,salgada delícia.

Óculos, cremes, toalhas e sacos de mão
Combustível volátil da inflamável sedução.
Corpo deitado, molhado, palácio de sal
Onda ardente, desejo-serpente, o Bem e o Mal.

Bala Perdida

Eis-me aqui de novo...
Bato á porta do desespero...
Na hora negra,a desilusão e frustração alimentam-me... as forças fogem-me por entre os dedos dormentes, a espada cai, a batalha perde-se.
Forço-me á clausura de mim... um grito mudo, agudo e dilacerante, corta-me em mil pedaços, fragmentos estilhaçados, ensanguentados...
Sombra funesta, pássaro ferido,colhido... trespassado de lado a lado pela bala perdida entre a inocência do sonho e a acidez da rejeição. 
Num vôo picado,descontrolado... a dureza da queda.
Aterro num tombo,sêco.
De volta á frieza segura do chão.

Alucinação...


Os estridentes e sibilantes gritos metálicos dos carris davam calor a uma carruagem mergulhada no silêncio ensurdecedor de si mesma. Jeremias, jovem universitário e eterno decifrador do enigma da vida, encontrava-se como em todas as manhãs a bordo de uma carruagem de metro, a caminho da sua Universidade. Sentado num dos bancos do meio, com os headphones nos ouvidos, ia sussurrando uma melodia irreconhecível e orquestrava o ritmo com as mãos sobre os joelhos. Jeremias odiava o metro, ou o «cemitério de gente» como gostava de lhe chamar, observava a massa impessoal e disforme de pessoas sem sorriso, sem voz e sem calor e odiava-as por isso.
Há já muito que observava a castradora rotina dos passageiros fortuitos, sim... ele conhecia bem os rostos sem luz, os olhares inseguros e desesperados, o pesado silêncio que queima e revela a mentira que todos sabem de cor. Jeremias não compreendia a mórbida rotina que os tornava dormentes, nem a necessidade que tinham de se refugiar, apavorados de si mesmos, no silêncio, no olhar cabisbaixo e no rosto fechado, petrificado como se de alguma penitência se tratasse. Ah ! ... Como odiava tudo aquilo, como tudo lhe cheirava a pôdre e a falso (!) , e quando observava aquela massa compacta e maquinalmente ordenada a percorrer as galerias subterrâneas sobre uma esteira rolante de metal, inevitavelmente percorria-lhe pela mente a imagem de um qualquer matadouro onde os animais são conduzidos à morte, ordeira e pacientemente aguardando a sua vez…

(Continuação...)

Nesse Momento...


Nessa sala que ontem conhecias de cór e que agora estranhas e temes... espreitam esses movéis que contam mil histórias num desabafo sufocante, essas paredes altas e esguias que te confortam e aquecem, esses quadros que explodem num agoniante e surdo grito de quem perdeu o que não chegou a possuír...

E essa música embriagante que te possui e comanda, que te consome cada bolsa de razão... e que queima como brasas flamejantes... penetrantes.

Nesse momento em que a agoniante e amarga tristeza se funde com o quente e luminoso sorriso, alquimía colorida... explosão de sensações...! e o céu uma amálgama de côres e solidão.

Nesse momento em que a dôr é prazerosa, e o prazer...febril e penoso...

Nesse momento onde sofres e sangras, onde ris e cais...choras tudo aquilo que nunca foste e celebras tudo aquilo que és... Perdes...Sais...Encontras...Desabafas...Suspiras... Vôas !!

Nesse momento onde, saturado, soltas um grito agudo e profundo e , de longas e pesadas lágrimas nos olhos, descobres a côr interna, viva………... e sorris.

Abraças-te a ti mesmo...


Nesse momento,
esse momento...
és Tu !!

Mergulho


Dá-me ar ! Aperta-me em ti e beija-me a testa. Aquece-me os pés gélidos com cobertores de lã e deixa-me aninhar no teu refúgio. Passa-me a mão pelo cabelo e sopra-me ao ouvido a voz quente de canela e mel. Deixa que o meu corpo moribundo da guerra chore no teu ombro nú. Lambe-me as feridas mortais que visto, cura-as com o beijo de Mãe. Estanca a hemorragia de Ser, ferida aberta que trago em mim. Sopra suavemente sobre os meus fantasmas e diz-me até me convencer, que não voltarão mais, de rostos mudos e olhos negros de julgar. Aquece-me de novo, tenho frio. Deita-te a meu lado, deita-te em mim. Fundidos no tempo, aquecidos em nós. Cantemos as nossas canções tristes e os fardos que carregamos, ensanguentados.Escrevamos novos contos com tintas de côr e flôres de cheiro, contos sem final, sem moral... Mergulha-me nos teus olhos e diz-me sem falar. Deixa que te abrace os medos e ilumine os túneis escuros que encerras para ti. Dá-me ar! Respiremos em uníssono, abraçados, compassados, ao ritmo do pulsar do coração.

S.

Quem diria, que o amor nasce onde ela mora ?
Que é sua a luz que aquece o dia.
E que até a aurora se demora
distraída na sua pele, dôce e esguia.

Z.

Apercebo-me, depois de ti, da fragilidade da vida e de ciomo passamos por ela desperdiçando-a nesta coisa de esperar por tudo, neste andar diário de olhos subconscientes para sempre no desejo. É este sentido que carregamos, instinto de eternidade, que atraiçoa, convencendo-nos de um contínuo caminho a percorrer pois, a morte desavisada só acontece com os outros! E assim, vamos passando os dias, os meses, os anos a idealizar e a adiar a vida, até apodrecermos no tempo..

Nú...

Mais uma vez a desilusão e frustração inundam-me.
Não tenho força para lutar, ou simplesmente recuso-a febrilmente.
De novo agrilhoado na prisão de mim...
Uma voz sufocada tenta ,aterrorizada, libertar-se mas é impotente face á aguda e agoniante redoma de frio metal que a sustém á força.
Não me reconheço, não me sinto eu. Sou tudo o que não suporto ser, sou uma sombra, um espectro, não sou !!
Amargo momento, sentimento crú , dolorosa infecção que, como furiosas brasas penetrantes queima o âmago, a pele interior, a essência de Ser;
Vou caíndo vertiginosamente na dormência de mim, abismo que me consome lentamente... pacientemente.

Parados no tempo

"O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. (.)
O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. (.)
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte: o país está perdido!"

Eça de Queirós , 1871.

Aforismos


" O que mata não é a queda na água, é o permanecer debaixo dela. "

A dôr de Pensar



Como é possivel ser feliz, verdadeiramente, e diluir todo o mundo nesse doce sentimento que alimenta o espírito e regenera o corpo ?

- Se por cada criança que nasce outra morre; Se por cada beijo há uma bala; Se por cada abraço há uma guerra; Se por cada justiça há um crime; Se por cada riso há uma lágrima;
Porque para haver sorte tem de haver azar; Porque para haver riso tem de haver o chorar; porque há sempre alguém em pior condição !

A felicidade que queremos só para nós, é forjada a sangue ao som dos gemidos de dôr de uma gente sem rosto, que para nós não são mais que pálidas imagens, telas sem côr que depois de dilaceradas,(pela indiferença), amontoamos em cacos e queimamos para nos aquecer, felizes...

- Porque é bom esquecer !
- Porque é preciso sonhar !
- Porque é preciso fugir !
- Porque é mau pensar !

- Porque quem semeia ventos, colhe sempre tempestade; Porque o que os olhos não vêem o coração não sente; Porque não sabemos dos outros; Porque não queremos saber da dôr dos outros (!), para enfim, podermos ser felizes...

Mas...
como não sentir a doçura quente de um beijo como uma avassaladora onda de prazer, harmoniosa melodia, felicidade...transbordante... Egoísta ! Como não sentir o sabor do mar, a côr do céu, o aroma quente da Terra, como uma felicidade abrasante que alastra a tudo o que somos ?

- Porque é bom moldarmos o sonho a tudo aquilo que é nosso, e para nós ... e evitar a todo o custo que o casco côr-de-rosa do sonho em que flutuamos embata no ácido e dilacerante rochedo da Realidade.

- Porque é bom escolher o que queremos ver...
e custa tanto pensar.


- Porque arde,
- Porque dói,
- Porque Mata !

Grito Mudo

Ardente como brasas vivas,
 lateja na sofreguidão de um bafo.

 Incisivo
 Penetrante
 Corrosivo
 Constante.